quarta-feira, 16 de maio de 2012

Pesca na Pintada*

RESISTÊNCIA Um dos pescadores mais velhos de Porto Alegre está prestes a se aposentar. Com 91 anos, seu Alfredo está satisfeito com a vida, apesar de uma trajetória marcada por dificuldades, enchentes e premonições


Texto e fotos | Lorenço Oliveira

Morador da Ilha da Pintada, Alfredo Gonçalves da Silva, de 91 anos, pesca desde os 15 anos. “Naquele tempo se pescava a remo e se usava rede de pano. O serviço era muito maior”, conta seu Alfredo, que frequentou apenas três meses de escola, e aprendeu tudo por conta própria . O mais velho pescador da ilha localizada no Delta do Jacuí conta que “muitos me perguntam quando eu pesco por dia, mas eu não posso dizer. Se for te dizer que 40 ou 50 quilos, eu estarei mentindo. Por exemplo, hoje eu matei uma caixa inteira de peixes, mas tem dias que não se pega nem cinco quilos. Um dia eu mato 10, outro 15 ou 20. E a vida é essa aí.”

Alfredo Gonçalves da Silva nasceu em uma boca de rio do arroio Formoso e aos três meses veio para a Ilha da Pintada com a família. Aos oito anos, vendia no mercado o peixe que o pai pescador pegava no rio. Casou-se aos 23, com Sueli Maciel, sete anos mais nova que ele. Tem cinco filhos (o mais velho faleceu em junho), 15 netos, 16 bisnetos, e há dois anos teve o segundo tataraneto. Vive há mais de 40 anos na mesma casinha em frente ao Rio Jacuí.

O genro de Alfredo, Vilmar Leggli Coelho, 63 anos, é presidente da Federação dos Pescadores do Rio Grande do Sul, e não pesca há nove anos, quando decidiu dar mais atenção à política. Ele observa que as novas gerações não sabem o que é pescar ou tem preguiça em passar pelas dificuldades. Seu filho, Carlos Adriano, o “Tino”, 36 anos, é o único da família que continuou pescando. Há dez anos, ele divide o serviço e os lucros com o avô. “Para quem tem família, se for querer comprar alguma coisa na prestação é muito difícil”, se queixa Tino. “Tem vezes que ficam sem pagar a luz, ou o gás. E a vida é essa aí. Não é tão fácil para quem vive só da pesca”.

Carlos Adriano foi o único neto de Alfredo a persistir na pescaria
Seu Alfredo perdeu o pai muito cedo, com 13 anos, mas ainda sonha com ele. “Às vezes, o pai chegava no portão e dizia ‘vim tomar café e ver meus netos’. Conversávamos horas a fio, no entanto, era tudo sonho.” Apesar disso, seu Alfredo não tem nenhum ritual ou oração que faz antes de ir pescar. “Tenho fé em Deus, em Nossa Senhora dos Navegantes e nunca me aconteceu nada”.

Mas ele já sentiu a força da natureza, com as enchentes, daquelas de colocar os móveis para cima. “Na enchente de 1941 eu perdi tudo. Saí com a roupa do corpo em um barco até uma parte mais alta. Tinha deixado um cofre com muito dinheiro em cima da casa, mas não consegui voltar para pegar.” A sorte de seu Alfredo foi que outro barco conseguiu socorrê-lo na Ilha Pedras Brancas, na Zona Sul, e levá-lo para Guaíba, onde ficou por três meses.

“Aos meus filhos, eu dei o conselho de não pescarem”, brada seu Alfredo, que não se sustenta apenas com os ganhos da pescaria. A mulher Sueli borda panos de prato, o que contribui com o orçamento. O dinheiro é reduzido, principalmente nos três meses da piracema (período de desova dos peixes), em que a comida em casa depende apenas da aposentadoria dos dois.

A maioria dos pescadores encerra suas atividades por volta dos 70 anos de vida. Com mais de 90, Alfredo pensa sempre em parar de pescar. As costas doem e já não consegue pegar tanto peso, mas reluta: “É a única coisa que eu realmente gosto de fazer”.



Estranhos avisos

“Se o seu Alfredo não tiver histórias para contar, eu não sei onde tu vais encontra”, brinca o genro Vilmar Leggli Coelho. Quando tinha 18 anos, Alfredo trabalhava de empregado. Era um dia qualquer quando ficou em terra fazendo a comida, enquanto os outros foram ao rio pescar. Arredou a comida para não esfriar e saiu com um facão para fazer lenha. “Quando cheguei em um mato, onde tinha umas taquareiras, cortei um galho e vi ao longe uma tampa de cimento em cima da grama, que parecia muito com uma sepultura, só que quadrada.” Recolheu a lenha e voltou para o fogão Quando os outros chegaram, ele ficou quieto. Depois, junto com um dos colegas, foram até o local com uma pá e uma marreta. “Chegando lá, não encontrei mais. Fui três vezes de novo, e nunca mais achei a sepultura”. Alfredo diz que ficou conhecido por mentiroso por muito tempo, “Dizem que quando tu levas outra pessoa para ver, a coisa desaparece”.

Seu Alfredo é conhecido por suas histórias, algumas fantásticas e outras vistas como mentiras
Então, ele começou a receber “avisos”. Uma vez, quando já estava casado, a esposa havia deixado a louça para secar em uma bacia e foram dormir. De madrugada, ele ouve um estrondo, como se o material tivesse caído da mesa. Ela foi ver, e tudo estava intacto. Voltaram para a cama. Quando eram seis horas da manhã, familiares bateram na casa dizendo que a irmã dele tinha morrido. “Tem coisas que aconteceram comigo, que até hoje eu não entendi”, angustia-se Alfredo.

Com a morte da mãe foi a mesma coisa. Tinha pouco menos de 40 anos. Era um dia quente, quando decidiu sair para pescar na parte mais acima do rio Jacuí. Sua mãe estava sentada em uma cadeira e perguntou se ele precisava alguma coisa. Concordaram que o dia era bom e resolveu sair, junto com o filho mais moço. Jogou a rede na água e já pensou em voltar logo. O filho pediu para ficar um pouco mais e acabaram dormindo lá naquela noite. Mas a vontade mesmo era de voltar para casa. Naquele almoço, não conseguiu comer direito. À tarde, jovem foi dar uma volta de caíque e ele ficou deitado na praia descansando, mas não dormiu. Ficou olhando para o rio quando uma garça branca pousou muito próxima dele. Continuou deitado e o bicho começava a mexer o pescoço de um lado para o outro, querendo dizer alguma coisa. Por quase uma hora, ele ficou olhando o animal. Quando o caíque do filho chegou na costa, a garça voou para cima de um árvore . Por volta das dez da noite, antes de deitarem para dormir, uma canoa chegou próximo ao porto e ele se levantou. “Chegou alguém aí”, disse. Eram conhecidos dele e não queriam lhe dizer por que vieram. “Podem falar, o que é que vocês querem?”, perguntou. “Nós viemos te buscar, tua mãe faleceu.” Os episódios se repetiram, com um primo dele e outras pessoas. Acertou várias vezes. Quando sentia uma coisa estranha, profetizava: “alguém morreu”.


*Reportagem publicada no jornal Expresso Popular (2011/2), produzido na disciplina de Produção e Redação em Jornal, ministrada pelos professores Ivone Cassol, Élson Sempé e Fabian Chelkanoff.

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