segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Por dentro da história

Entre tantas causas, manifestantes pediram mais recursos para melhorar a qualidade da educação no país

Quatro estudantes de Jornalismo e um desafio: deixar a posição tradicional de repórter de lado e misturar-se aos manifestantes em Porto Alegre no dia 20 de junho para montar um relato íntimo do movimento. Apenas com os sentidos como ferramenta de apuração, sem blocos, gravadores ou entrevistas formais, buscavam um ponto de vista alternativo. Nestas páginas, a história de quem mergulhou na marcha que parou a região central da Capital. Quatro visões que se completam e questionam os limites da objetividade jornalística
Por volta das 17h30min do dia 20 junho, ao lado dos leões da fachada da Prefeitura de Porto Alegre, um grupo de punks e anarquistas, alguns com o rosto escondido por camisetas e cachecóis, espalhava um forte cheiro de maconha pelo Paço Municipal. Instantes depois, um deles, visivelmente alterado, iria para o meio da multidão tentar conscientizá-la, segurando em uma das mãos uma garrafa de vodka quebrada.
Com rostos encobertos para dificultar a identificação da polícia, portando bandeiras negras e vermelhas, além de cartazes de repúdio à imprensa, os anarquistas, quando acompanhados de perto, não podem ser reduzidos à figura de vândalos, arruaceiros e baderneiros. Ao lado do movimento era possível perceber que, embora muito questionado, ao menos parte dos integrantes possui, sim, projetos e ideais.
Um grupo, que se denominava Frente Autônoma, parecia mais sério. Em meio à multidão com causas difusas e confusas, um componente distribuía uma simples folha de papel A4, ou melhor, a publicação Opinião Anarquista, da Federação Anarquista Gaúcha (FAG). Lia-se no papel os anseios daqueles que só aparecem na mídia como protagonistas da depredação: “Abrir a caixa preta da patronal do transporte coletivo!”, “Democratização da mídia!”, ”Protesto não é crime!”, entre outras palavras de ordem.
Perto dali, ao ser perguntada sobre os panfletos que distribuía, uma brigadiana respondeu que era um recado em defesa dos manifestantes no ato. “E vai ter tropa de choque?”, questionou-se. “Claro, sempre tem uns arruaceiros.”
O clima parecia de Copa, com caras pintadas de verde e amarelo, bandeiras do Brasil e cornetas. Um grupo corria e ria enquanto bradava “Fora PT”. Outros, não tão bem humorados, pregavam o “Acabou o amor, isso aqui vai virar Turquia”. Vendedores ambulantes aproveitavam o tempo para vender guarda-chuvas e capas, além de água, refrigerantes, lanches e até bandeirinhas. Alguns adolescentes carregavam vinho em garrafa de plástico e chamavam os amigos para ir à prefeitura. Outros optavam por levar cervejas ou consumir substâncias alternativas.
Entre estes últimos, surgiu até a tentativa do coro “Dilma Rousseff, legaliza o beck”, sem sucesso, talvez porque os companheiros desta reivindicação estivessem na outra ponta da manifestação, ou porque o grito de guerra surgiu nas bordas do movimento, sob a proteção de um prédio de esquina, onde se escondiam da chuva umas 15 pessoas. Ao ecoar, o chamado foi abafado pela multidão interessada em outros assuntos.
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Às 18h30min, surgiam os primeiros coros que propunham uma rota para a passeata: “Anda! Anda! Anda!” e “Quem não anda quer aumento!”. Este último grito de ordem era reeditado para diversas situações. Quando o Hino Rio-Grandense surgiu, uma garota gritava sozinha: “Ei, reaça! Vaza dessa marcha!”.
Para onde iriam? Num primeiro olhar, isso parecia ser decidido literalmente no grito. Alguns gritavam “Borges, Borges!”, indicando a Avenida Borges de Medeiros, outros pediam que a massa fosse pela Júlio de Castilhos. Em meio a tudo isso, porém, os anarquistas da Frente Autônoma conversavam entre si e definiam que iriam por esta última via, tomariam o Túnel da Conceição e caminhariam pela Avenida João Pessoa. O grupo acelerou o passo, tomou a frente e, repentinamente, passou a ser seguido pela multidão.
Ao lado da prefeitura, no cruzamento com a Siqueira Campos, em um princípio de briga, a massa se dividiu. “Volta! Volta! Eles são do PT”, urrava um sujeito baixinho, entroncado, que tentava convencer o grupo a permanecer em volta da prefeitura. No entanto, anarquistas e a tal direita reacionária uniam-se na hora de cantar “Sem partido! Sem partido!” para os militantes do Partido dos Trabalhadores (PT), abominado por quase todos que ali estavam. Pouco se cantava pautas concretas, mas houve vibração quando circulou o boato de que uma bandeira do PT teria sido rasgada. Enquanto uma dezena de pessoas caminhava por cima do arco da estação Mercado do Trensurb, 18 cavalarianos da Brigada Militar, parados sob o mesmo monumento, observavam o povo que tomava de forma pacífica a avenida.
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Por um momento, a cena parecia um grande evento para o público jovem, como o Planeta Atlântida. Os chapéus de momo vermelhos e pretos e os narizes de palhaço tentavam lembrar que a reunião tinha outra motivação. Cartazes que se desfaziam na chuva, cartolinas envoltas em plástico e até os guarda-chuvas serviam de apoio para frases como “Quem não tem virtude acaba por ser escravo” e “Parem de roubar que vai melhorar”. O grito dos indignados acompanhava o canto da hora: “Ei, Pelé, vai tomar…”. Perto das 19h, a massa atiçava as câmeras e os celulares de quem ainda estava pelo Centro, mas não protestava: tinha apenas o interesse em obter seu próprio registro das faixas, que, entre aqueles que agitavam bandeiras negras e vermelhas, continham dizeres como “Não intimidar, não desmobilizar! Rodear de solidariedade os que lutam!”.
Em frente à Estação Rodoviária e ao Templo Central da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), bastante criticada, novos grupos se uniam à marcha. Em um determinado momento, pouco antes da entrada do túnel, panos brancos apareciam nas janelas dos prédios em volta. O refrão “Quem apoia pisca a luz” convidava os moradores a participarem do protesto. Quando uma turma percebeu que, em uma das janelas, as luzes eram coloridas, os gritos ganharam malícia: “Vem pra rua e fica nua” e “Quem apoia mostra os peitos” eram direcionados às prostitutas que abanavam sem intimidação.
Dentro do túnel, a fumaça de sinalizadores preenchia o espaço, que mais se parecia com uma caixa amplificada de coros: “O povo acordou!”. A semelhança com uma torcida de futebol saindo de um estádio era nítida. Um espetáculo que exigia estar na escuta de um radinho, como em uma partida de futebol no estádio. Ninguém sabia direito o que se passava na linha de frente do manifesto.
Quando o primeiro barulho de bomba foi ouvido, um homem barbudo tranquilizou a Frente Autônoma: “Essa é das nossas”. Enquanto milhares, muitos deles envoltos na bandeira do Brasil ou do Rio Grande do Sul, gritavam o Hino Nacional, os seguidores de Bakunin, ícone do anarquismo, respondiam com “Nossa pátria é o mundo inteiro”. E a disputa seguia: de um lado “O gigante acordou!”, do outro “Só você não viu, a periferia nunca dormiu”, até que cruzaram o túnel e pararam de cantar em respeito aos internados na Santa Casa. A ordem era de silêncio: “É hospital, turista”.
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Do outro lado da Santa Casa, enquanto os manifestantes pediam silêncio, uma parte virou-se ao contrário da marcha, determinada a chegar ao Palácio Piratini. Por um momento, as pessoas não sabiam o roteiro a seguir. Gritos  sugeriam a RBS. Quem seguiu pela Avenida João Pessoa, encaminhou-se para a Ipiranga, provavelmente para chegar ao prédio da Zero Hora. Um sujeito escalou a primeira parada de ônibus da João Pessoa, para expor a bandeira anarquista. Houve vaias.
Nos protestos anteriores, o caminho para a João Pessoa significava um fim certo. “Temos que voltar! É emboscada”, gritava um homem de meia idade, desmascarado, que tentava explicar a conspiração: “Tem gente infiltrada levando o pessoal para (avenida) Ipiranga, onde está o (batalhão de) choque”. O boato de policiais infiltrados no front não se confirmou, mas a batalha era certa.
No final da avenida, o conflito começou. A partir daí, o grupo anarquista recolhia cartazes e bandeiras e partia para o combate. Como se ignorassem as várias bombas de gás lacrimogêneo, a ordem permanecia sempre a mesma: não recuar. Além de um helicóptero que voava baixo, a fumaça e o barulho de bombas de efeito moral dominaram o protesto. As pessoas corriam, muitos pediam para resistir. Mas a pressão exercida pelas bombas fazia com que uns poucos voltassem. A marcha se dividiu novamente, e uma parte fez o trajeto inverso, sem saber que rumo tomar.
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Por volta das 21h, a esquina das avenidas Ipiranga com João Pessoa estava envolta em fumaça branca, provocada pelas bombas da tropa de choque. Um manifestante sufocado lavava o rosto com água das poças formadas pela chuva no asfalto. Aqueles que carregavam vinagre dividiam com quem precisasse aliviar os efeitos do gás. O protesto do contra tudo levou muitos para aquela esquina, sem que soubessem ao certo o motivo. Alguns falavam em emboscada, estratégia para desvirtuar o caminho da marcha. A indignação era coletiva, as causas, não. As pessoas caminhavam lado a lado, mas não juntas.
Quem voltava para a Cidade Baixa, na esquina da Lima e Silva com a República, enxergava a cavalaria da BM passando pela João Pessoa. Próximo a um bar, um rapaz tentava depredar um contêiner de lixo e era vaiado pelos poucos que o cercavam. Em plena quinta-feira, às 22h, as ruas do bairro estavam quase vazias. Parecia madrugada.
No cruzamento da Borges de Medeiros com a Rua dos Andradas, a dita Esquina Democrática, vândalos lançavam explosivos, depredavam e saqueavam uma loja. Três policiais da cavalaria passaram no momento e seguiram sem dar atenção ao saque. Em outro ponto da avenida, uma jovem encenava uma performance. Apoiada sobre os joelhos, ela levava as mãos ao rosto, simulando choro. Em suas costas, um cartaz que dizia: “Não é o seu gás lacrimogêneo que me faz chorar”.
A polícia montada fazia uma varredura nos locais que ainda concentravam grupos de protestos. Os que restavam no Centro se dirigiram para o ponto onde o protesto se originou, a prefeitura. Em frente à sede do governo municipal, a tropa de choque fazia uma barreira.
Depois de alguns minutos de confronto, a tropa de militares separou-se. No alto da Borges, cerca de 25 policiais montados. Na Júlio de Castilhos, a tropa de choque se posicionava, assim como na prefeitura e ao lado do Mercado Público. Toda a região foi cercada pela polícia. As bombas de gás eram lançadas, e o deslocamento ficou difícil. O cerco da polícia dispersou os remanescentes. Não era possível passar pela barreira em grandes grupos.
Numa estação de ônibus do Mercado Público, um jovem era socorrido por dois bombeiros. Havia passado mal depois de ser atingido por bombas de gás. Logo ao lado, além das barreiras policiais, um cidadão vigiava suas frutas e legumes no abrigo da Praça Parobé. As ruas estavam desertas, e táxis não circulavam. O vendedor de cabelos brancos contou que por ali passaram manifestantes e também a polícia, mas, para sua sorte, nada foi levado. Sobre a agitação, comentou: “Complicado, muito confuso”. O vendedor, com  sua dúvida, talvez estivesse mais esclarecido do que muitos que bradavam frases feitas.

*Reportagem originalmente publicada no jornal impresso Editorial J, disponível abaixo: