sexta-feira, 17 de maio de 2013

Corrida por justiça*


Comissão poderá transformar denúncias de crimes ocorridos durante a ditadura em processos judiciais.

Texto | Lorenço Oliveira
Foto | Camila Hermes

A Comissão Nacional da Verdade deve­rá apresentar um relatório, em maio de 2014, com a conclusão das investigações das violações de direitos humanos co­metidas durante período de regime militar (1964-1985). O acervo documental e multimídia coletado pelos sete comissários será entregue ao Arquivo Na­cional, em Brasília, onde integrará o Projeto Memó­rias Reveladas. A lei que criou a comissão não pre­vê, formalmente, que uma cópia deste relatório seja encaminhada ao Ministério Público Federal. Apesar disso, ao tornarem-se públicos estes materiais, o ór­gão estará apto a apresentar denúncias contra os res­ponsáveis pelos crimes. Caberá, então, à Justiça acei­tá-las ou não. Mas quais as possibilidades reais de alguém ser julgado? A corrida por justiça encontra seu primeiro obstáculo no argumento mais utilizado nas respostas dos juízes às denúncias dos promoto­res: “a Lei de Anistia perdoou os crimes cometidos neste período”.

A Lei n.° 6.683, conhecida como Lei de Anis­tia, foi decretada pelo presidente João Baptista Fi­gueiredo em 28 de agosto de 1979. Nesta época, os setores da esquerda clamavam por uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. O problema é que o texto sancionado provocou uma confusão a respeito de sua abrangência:

“Art. 1° É concedida anistia a todos quantos, no período compreen­dido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, come­teram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos [...]”.

A promulgação da lei foi o marco inicial para reabertura da democracia e possibilitou que figuras como Leonel Brizola e Luiz Carlos Prestes, que tiveram os direitos políticos cassados, retornas­sem do exílio. No entanto, as perseguições, os sequestros e as tor­turas praticados pelos militares também estariam perdoados, sendo considerados, na interpretação da Justiça, crimes conexos. Logo abaixo do artigo, o parágrafo 1° tentava explicar:

“§ 1° - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.”

A oposição aceitou uma lei que abrangesse a todos, inclusive os repressores. A decisão foi tomada para garantir a volta dos mili­tantes ao país.

Esta forma de legislar tornou-se comum na história da polí­tica brasileira. A estratégia foi implantada por Getúlio Vargas, du­rante o Estado Novo, com a Lei n.° 5.452 de 1° de maio de 1943, que regulamentou Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A norma estabeleceu pela primeira vez critérios individuais e coleti­vos de trabalho, que estão vigentes até hoje no país. Para ilustrar esta ideia, pode se partir de uma situação hipotética: uma empresa propõe a seus funcionários que passem a trabalhar de oito para dez horas por dia, mas não lhes assegura que pagará o tempo extra. O empregado protesta e o patrão ameaça demití-lo, caso não aceite a proposta. Logo, as opções do trabalhador são limitadas ao que seu chefe lhe impõe.

Em 2010, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), atra­vés da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.° 153, questionou a constitucionalidade da Lei de Anis­tia, também para crimes cometidos por policiais e militares. Pediu-se ao Supremo Tribunal Federal (STF) que interpretasse de forma mais clara, justamente, o trecho referente aos crimes conexos de “qualquer natureza”. Para a Ordem, os agentes do Estado pratica­ram crimes comuns e não seria possível considera-los políticos. Isso porque crimes políticos seriam aqueles praticados contra a seguran­ça nacional e a ordem política e social, ou seja, cometidos apenas por opositores do golpe.

O entendimento do STF não foi o mesmo. Por sete votos a dois, o caso foi julgado improcedente. O relator do processo, o ex-ministro Eros Grau, o único da cúpula que sofreu perseguições por advogar a favor de insurgentes durante a ditadura militar, posicio­nou-se contrário a OAB. Reiterou, no entanto, no final de seu voto, que a decisão “não exclui o repúdio a todas as modalidades de tor­tura, de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou delinquentes”. Para Grau, não cabe ao Poder Judiciário rever um acordo político, e sim ao Poder Legislativo. Ricardo Levandowski e Carlos Ayres Britto foram os únicos ministros divergentes. O presidente da corte na época, o ex-ministro Cézar Peluso, que proferiu o último voto do julgamento, destacou que “a interpretação da anistia é de sentido amplo e de generosidade, e não restrito”. Peluso afirmou que a lei não ofende o princípio da igualdade, em outras palavras, a “tese dos dois demônios”: ambos os lados cometerem violências de igual valor.

 Desde então, praticamente todas as denúncias do Ministério Público Federal contra aqueles que trabalharam em aparelhos re­pressores do Estado receberam negativas da Justiça. O professor de Direito Penal na Faculdade Dom Bosco e membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS), Roque Reckziegel, explica que, mesmo se Lei de Anistia fosse revo­gada, as acusações levantadas contra os militares seriam derrubadas por mais um obstáculo: o preceito da prescrição. Para compreender este aspecto é preciso explicar dois tipos de crimes: instantâneos e permanentes.

“Crimes instantâneos são todos aqueles que se encerram no instante em que ocorrem, no caso, homicídio”, exemplifica o pro­fessor. Ele esclarece que este tipo de delito prescreve, ou seja, perde a condição de ser julgado depois de 20 anos do ocorrido. “Já o crime permanente é aquele que se perpetua no tempo, como sequestro e cárcere privado”. Neste caso, o crime também prescreve, no entanto, conta-se 20 anos a partir do momento em que se encerra o fato, ou seja, “quando a vítima é libertada, se estiver viva ou se seus restos mortais forem encontrados”, esclarece Reckziegel. Essa brecha na lei pode servir para acusar agentes dos “desaparecimentos forçados”.

O atual Código de Processo Penal, de dezembro de 1940, não prevê o crime de “desaparecimento forçado”. Quando se trata de ví­tima desaparecida, após ser privada ilegalmente de sua liberdade, a tipificação adequada é a de sequestro. Este argumento foi utilizado, em abril de 2012, para a denúncia n.º 31.107 do Ministério Públi­co Federal (MPF), da Procuradoria da República em São Paulo, contra o militar reformado e chefe do Destacamento de Opera­ções Internas do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI-SP) na década de 1970, Carlos Alberto Brilhante Ustra. A denúncia apontava também o delegado da Policia Civil integrante de uma das equipes de interrogatório do mesmo aparelho repressor, Dirceu Gravina, vulgo “J.C.” ou “Jesus Cristo”. O motivo da denún­cia? Desde o dia 6 de maio de 1971, não se conhece o paradeiro de Aluízio Palhano Pedreira, um dos principais sindicalistas do país na década de 1960. A Justiça rejeitou. Entre os argumentos, afirma que a tese de sequestro não é realista, pois se a vítima estivesse viva, estaria hoje com 90 anos em um cativeiro. E que não se tratando de sequestro em andamento, o fato teria se consumado dentro do período vigente da Lei de Anistia, endossada pelo STF em 2010.

Entretanto, o entendimento do MPF de classificar estes cri­mes como sequestro é baseado em pelo menos três sentenças de extradições chanceladas pelo próprio Supremo. Uma delas é refe­rente à decisão da corte de entregar à Argentina o major argentino Norberto Raul Tozzo, por suposta participação do crime conhecido como “Massacre de Margarita Belén”, ocorrido durante a ditadura no país vizinho (1976-1983). Neste caso, o STF liberou o militar para ser julgado pelo Tribunal de Resistência apenas pelo crime de sequestro qualificado. Tozzo cometeu um crime de lesa-humani­dade, imprescritível e punível com prisão perpétua. Como não há este tipo de cárcere no Brasil, a extradição ocorreu de acordo com o equivalente na legislação brasileira. Diferente da Argentina, que cumpre as exigências das comissões internacionais, a desobediência do Brasil no âmbito internacional sustenta mais uma barreira na corrida pela Justiça.

A Constituição Federal de 1988 prevê a cooperação do Brasil com países através de tratados, conferências e convenções, o que na doutrina do Direito Internacional, são conhecidos pelo jargão “algodões entre cristais”. O professor de Direito Internacional da Fundação Escola de Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul (FEMARGS) Renato Selayaram admite que estes “algodões” não são totalmente eficazes, e é preciso acreditar na máxima: “ruim contigo, pior sem ti”. O advogado pode parecer pessimista, mas não nega que sempre ocorreram violações na história da humanidade. “O divisor de águas dos direitos humanos foi o fim da Segunda Guerra Mundial. As atrocidades da Alemanha Nazista com os se­res humanos provocou a criação da Organização das Nações Uni­das (ONU) e da primeira Comissão de Direitos Humanos”, explica Selayaram.

Antes mesmo da ONU, fundada em outubro de 1945, o marco inicial de cooperação entre países ocorreu em 1919, com a assinatu­ra do Tratado de Versalhes, após o fim da Primeira Guerra Mundial. Este documento instituía a chamada Liga das Nações, organização internacional que tinha como objetivo principal assegurar a paz no mundo. “No entanto, era natimorta. Sem a assinatura dos Estados Unidos a liga nasceu fadada ao insucesso”, justifica Selayaram. Tan­to é verdade que uma segunda guerra não conseguiu ser evitada.

Somente com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em dezembro 1948, surgiram as primeiras definições em defesa da integridade física e psicológica dos seres humanos. Em consequência, passou-se a promover instrumentos e mecanismos (leis e tribunais) que pudessem garantir estes direi­tos. Como órgão regional das Nações Unidas, a Organização dos Estados Americanos (OEA) idealizou, em 1969, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, na cidade de São José, na Costa Rica. Nesta ocasião, foi assinado um pacto que serve ainda hoje de base para Sistema Interamericano de proteção dos Direi­tos Humanos. O acordo não foi uma unanimidade entre os países americanos e só entrou em vigor internacional em julho de 1978. O Brasil depositou sua carta de adesão em setembro de 1992, data em que passou a valer internamente. Os Estados Unidos até hoje não assinaram.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), me­canismo da OEA, notificou o governo brasileiro, em 14 de dezem­bro de 2010, a respeito do caso da “Guerrilha do Araguaia”. Os juízes internacionais concluíram:
“As disposições da Lei de Anistia que impedem a investigação e san­ção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos, razão pela qual não podem continuar representando um obstáculo para a in­vestigação dos fatos do caso, nem para a identificação e a punição dos responsáveis.”

Quando o MPF denunciou o comandante Ustra, em 2012, ressaltou-se este parecer da CIDH. O que parecia oferecer uma vantagem para a família das vítimas, para a Justiça Federal não seria a rejeição desta denúncia que estaria desrespeitando a Corte. Entre as razões do juiz, descritas no recurso do Ministério, “não se vislum­bra qualquer intenção do Estado brasileiro na punição dos crimes cometidos no período de exceção”. Para respaldar esta afirmação, os juízes tornaram a levantar a primeira barreira da corrida: a Lei de Anistia. E, para distanciar ainda mais as possibilidades, evocaram que a Comissão Nacional da Verdade não traz em seu texto ne­nhum intuito de punir os autores dos delitos, e que a impunidade vem sendo confirmada pela Presidente da República.

O fato da Comissão não ter caráter jurisdicional ou persecu­tório não exclui o papel constitucional do MPF em “promover, pri­vativamente, a ação penal pública, na forma de lei”. A Procuradoria da República em São Paulo alegou, no recurso do caso de Ustra e Gravina, que, de fato, não se trata de uma hipótese de uma vítima em cativeiro, com sua liberdade de ir e vir tolhida, mas isso não sig­nifica que a conduta praticada não seja considerada como sequestro. Para tentar abrir os olhos da Justiça, a promotoria comparou o caso com outra situação semelhante:

“Se assim não fosse, a subtração de crianças, ainda bebês, para vi­verem como filhos e filhas, adotivos(as) ou não, com outras famí­lias, jamais seria considerada como sequestro. Com efeito, no caso do sequestro de bebês, não há nenhuma vítima em cativeiro e com sua liberdade de ir e vir tolhida. Mas é irrefutável que tal fato criminoso precisa encontrar uma resposta no ordenamento jurídico penal.”

Pode-se perceber que há um ciclo de argumentos que retor­nam sempre ao ponto inicial: a barreira da anistia. Mas as deci­sões, que beiram uma suposta lógica prática, afastam-se da técnica jurisdicional. O ativista e presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH-RS), Jair Krischke, não acredita que a Lei precise de revisão. “Quero apenas que se aplique tal qual está escrita”. Ele aponta para o segundo parágrafo da norma:

“§ 2° - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condena­dos pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.”

Krischke tem esperança de que a Justiça considere que os cri­mes cometidos pelos agentes do Estado são delitos comuns. O pro­fessor de Direito Penal Roque Reckziegel lembra que o crime de tortura, por exemplo, até 1997 não estava previsto no Código Penal. “A tortura só existia como qualificadora do crime de homicídio e agravante de crimes genéricos. Assim como o terrorismo, em que até hoje não há uma definição específica”, explica. O único crime regulamentado que se assemelha a tortura neste período é o de abu­so de autoridade, implantado em 1965. No entanto, novamente há o bloqueio da prescrição. Isso não aconteceria se a Justiça encarasse a tortura segundo as Convenções Internacionais. “A tortura é um crime de lesa-humanidade, logo não prescreve”, defende o professor de Direito Internacional Roberto Selayaram.

A natureza do tema e a existência de duas normas, uma in­terna e outra externa, gera a chamada “insegurança jurídica”, que, segundo os dois advogados, tende a ser bastante comum no Direito. Apesar das inúmeras negativas da Justiça Federal, não foi o que ocorreu em agosto de 2012. A juíza Nair Pimenta de Castro, da 2° Vara Federal em Marabá, no Pará, aceitou os requisitos para trans­formar dois militares nos primeiros réus por crimes na ditadura na Justiça brasileira. O Coronel da Reserva do Exército Sebastião Curió Rodrigues de Moura e o major da reserva Lício Augusto Maciel são acusados pelo sequestro qualificado de militantes captu­rados durante a repressão à “Guerrilha do Araguaia”, na década de 1970, e até hoje desaparecidos. Enfim, a corrida por justiça parece estar mais próxima de chegar aos tribunais.

*Ensaio produzido para o livro "Comissão da Verdade: um movimento para calar o silêncio". Produzido por alunos da disciplina de Projeto Experimental em Jornal (2012/2), sob a orientação dos professores Fábio Canatta e Vitor Necchi, da Famecos (PUC-RS).