Comissão poderá transformar denúncias de crimes ocorridos durante a ditadura em processos judiciais. |
Texto | Lorenço Oliveira
Foto | Camila Hermes
A Comissão Nacional da Verdade deverá apresentar um
relatório, em maio de 2014, com a conclusão das investigações das violações de
direitos humanos cometidas durante período de regime militar (1964-1985). O
acervo documental e multimídia coletado pelos sete comissários será entregue ao
Arquivo Nacional, em Brasília, onde integrará o Projeto Memórias Reveladas. A
lei que criou a comissão não prevê, formalmente, que uma cópia deste relatório
seja encaminhada ao Ministério Público Federal. Apesar disso, ao tornarem-se
públicos estes materiais, o órgão estará apto a apresentar denúncias contra os
responsáveis pelos crimes. Caberá, então, à Justiça aceitá-las ou não. Mas
quais as possibilidades reais de alguém ser julgado? A corrida por justiça encontra
seu primeiro obstáculo no argumento mais utilizado nas respostas dos juízes às
denúncias dos promotores: “a Lei de Anistia perdoou os crimes cometidos neste
período”.
A Lei n.° 6.683, conhecida como Lei de Anistia, foi
decretada pelo presidente João Baptista Figueiredo em 28 de agosto de 1979.
Nesta época, os
setores da esquerda clamavam por uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. O
problema é que o texto sancionado provocou uma confusão a respeito de sua
abrangência:
“Art. 1°
É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo
com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos
[...]”.
A
promulgação da lei foi o marco inicial para reabertura da democracia e
possibilitou que figuras como Leonel Brizola e Luiz Carlos Prestes, que tiveram
os direitos políticos cassados, retornassem do exílio. No entanto, as
perseguições, os sequestros e as torturas praticados pelos militares também
estariam perdoados, sendo considerados, na interpretação da Justiça, crimes
conexos. Logo abaixo do artigo, o parágrafo 1° tentava explicar:
“§ 1° -
Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza
relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.”
A oposição
aceitou uma lei que abrangesse a todos, inclusive os repressores. A decisão foi
tomada para garantir a volta dos militantes ao país.
Esta forma
de legislar tornou-se comum na história da política brasileira. A estratégia
foi implantada por Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, com a Lei n.° 5.452
de 1° de maio de 1943, que regulamentou Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT). A norma estabeleceu pela primeira vez critérios individuais e coletivos
de trabalho, que estão vigentes até hoje no país. Para ilustrar esta ideia,
pode se partir de uma situação hipotética: uma empresa propõe a seus funcionários que passem a trabalhar de oito
para dez horas por dia, mas não lhes assegura que pagará o tempo extra. O
empregado protesta e o patrão ameaça demití-lo, caso não aceite a proposta.
Logo, as opções do trabalhador são limitadas ao que seu chefe lhe impõe.
Em
2010, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), através da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.° 153, questionou a
constitucionalidade da Lei de Anistia, também para crimes cometidos por
policiais e militares. Pediu-se ao Supremo Tribunal Federal (STF) que interpretasse
de forma mais clara, justamente, o trecho referente aos crimes conexos de
“qualquer natureza”. Para a Ordem, os agentes do Estado praticaram crimes
comuns e não seria possível considera-los políticos. Isso porque crimes
políticos seriam aqueles praticados contra a segurança nacional e a ordem
política e social, ou seja, cometidos apenas por opositores do golpe.
O
entendimento do STF não foi o mesmo. Por sete votos a dois, o caso foi julgado
improcedente. O relator do processo, o ex-ministro Eros Grau, o único da cúpula
que sofreu perseguições por advogar a favor de insurgentes durante a ditadura
militar, posicionou-se contrário a OAB. Reiterou, no entanto, no final de seu
voto, que a decisão “não exclui o repúdio a todas as modalidades de tortura,
de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou delinquentes”. Para Grau,
não cabe ao Poder Judiciário rever um acordo político, e sim ao Poder
Legislativo. Ricardo Levandowski e Carlos Ayres Britto foram os únicos
ministros divergentes. O presidente da corte na época, o ex-ministro Cézar
Peluso, que proferiu o último voto do julgamento, destacou que “a interpretação
da anistia é de sentido amplo e de generosidade, e não restrito”. Peluso
afirmou que a lei não ofende o princípio da igualdade, em outras palavras, a
“tese dos dois demônios”: ambos os lados cometerem violências de igual valor.
Desde então, praticamente todas as denúncias
do Ministério Público Federal contra aqueles que trabalharam em aparelhos repressores
do Estado receberam negativas da Justiça. O professor de Direito Penal na
Faculdade Dom Bosco e membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB-RS), Roque Reckziegel, explica que, mesmo se Lei de
Anistia fosse revogada, as acusações levantadas contra os militares seriam
derrubadas por mais um obstáculo: o preceito da prescrição. Para compreender
este aspecto é preciso explicar dois tipos de crimes: instantâneos e
permanentes.
“Crimes
instantâneos são todos aqueles que se encerram no instante em que ocorrem, no
caso, homicídio”, exemplifica o professor. Ele esclarece que este tipo de
delito prescreve, ou seja, perde a condição de ser julgado depois de 20 anos do
ocorrido. “Já o crime permanente é aquele que se perpetua no tempo, como sequestro
e cárcere privado”. Neste caso, o crime também prescreve, no entanto, conta-se
20 anos a partir do momento em que se encerra o fato, ou seja, “quando a vítima
é libertada, se estiver viva ou se seus restos mortais forem encontrados”,
esclarece Reckziegel. Essa brecha na lei pode servir para acusar agentes dos
“desaparecimentos forçados”.
O atual
Código de Processo Penal, de dezembro de 1940, não prevê o crime de
“desaparecimento forçado”. Quando se trata de vítima desaparecida, após ser
privada ilegalmente de sua liberdade, a tipificação adequada é a de sequestro.
Este argumento foi utilizado, em abril de 2012, para a denúncia n.º 31.107 do
Ministério Público Federal (MPF), da Procuradoria da República em São Paulo,
contra o militar reformado e chefe do Destacamento de Operações Internas do
Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI-SP) na década de 1970, Carlos
Alberto Brilhante Ustra. A denúncia apontava também o delegado da Policia Civil
integrante de uma das equipes de interrogatório do mesmo aparelho repressor, Dirceu Gravina, vulgo “J.C.” ou “Jesus Cristo”. O motivo da
denúncia? Desde o dia 6 de maio de 1971, não se conhece o paradeiro de Aluízio
Palhano Pedreira, um dos principais sindicalistas do país na década de 1960. A
Justiça rejeitou. Entre os argumentos, afirma que a tese de sequestro não é
realista, pois se a vítima estivesse viva, estaria hoje com 90 anos em um
cativeiro. E que não se tratando de sequestro em andamento, o fato teria se
consumado dentro do período vigente da Lei de Anistia, endossada pelo STF em
2010.
Entretanto,
o entendimento do MPF de classificar estes crimes como sequestro é baseado em
pelo menos três sentenças de extradições chanceladas pelo próprio Supremo. Uma
delas é referente à decisão da corte de entregar à Argentina o major argentino
Norberto Raul Tozzo, por suposta participação do crime conhecido como “Massacre
de Margarita Belén”, ocorrido durante a ditadura no país vizinho (1976-1983).
Neste caso, o STF liberou o militar para ser julgado pelo Tribunal de
Resistência apenas pelo crime de sequestro qualificado. Tozzo cometeu um crime
de lesa-humanidade, imprescritível e punível com prisão perpétua. Como não há
este tipo de cárcere no Brasil, a extradição ocorreu de acordo com o
equivalente na legislação brasileira. Diferente da Argentina, que cumpre as
exigências das comissões internacionais, a desobediência do Brasil no âmbito
internacional sustenta mais uma barreira na corrida pela Justiça.
A
Constituição Federal de 1988 prevê a cooperação do Brasil com países através de
tratados, conferências e convenções, o que na doutrina do Direito
Internacional, são conhecidos pelo jargão “algodões entre cristais”. O
professor de Direito Internacional da Fundação Escola de Magistratura do
Trabalho do Rio Grande do Sul (FEMARGS) Renato Selayaram admite que estes
“algodões” não são totalmente eficazes, e é preciso acreditar na máxima: “ruim
contigo, pior sem ti”. O advogado pode parecer pessimista, mas não nega que sempre ocorreram violações
na história da humanidade. “O divisor de águas dos direitos humanos foi o fim
da Segunda Guerra Mundial. As atrocidades da Alemanha Nazista com os seres
humanos provocou a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e da
primeira Comissão de Direitos Humanos”, explica Selayaram.
Antes mesmo
da ONU, fundada em outubro de 1945, o marco inicial de cooperação entre países
ocorreu em 1919, com a assinatura do Tratado de Versalhes, após o fim da
Primeira Guerra Mundial. Este documento instituía a chamada Liga das Nações,
organização internacional que tinha como objetivo principal assegurar a paz no
mundo. “No entanto, era natimorta. Sem a assinatura dos Estados Unidos a liga
nasceu fadada ao insucesso”, justifica Selayaram. Tanto é verdade que uma
segunda guerra não conseguiu ser evitada.
Somente com
a promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em dezembro 1948,
surgiram as primeiras definições em defesa da integridade física e psicológica
dos seres humanos. Em consequência, passou-se a promover instrumentos e
mecanismos (leis e tribunais) que pudessem garantir estes direitos. Como órgão
regional das Nações Unidas, a Organização dos Estados Americanos (OEA)
idealizou, em 1969, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, na cidade
de São José, na Costa Rica. Nesta ocasião, foi assinado um pacto que serve
ainda hoje de base para Sistema Interamericano de proteção dos Direitos
Humanos. O acordo não foi uma unanimidade entre os países americanos e só
entrou em vigor internacional em julho de 1978. O Brasil depositou sua carta de
adesão em setembro de 1992, data em que passou a valer internamente. Os Estados
Unidos até hoje não assinaram.
A Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), mecanismo da OEA, notificou o
governo brasileiro, em 14 de dezembro de 2010, a respeito do caso da “Guerrilha do Araguaia”.
Os juízes internacionais concluíram:
“As
disposições da Lei de Anistia que impedem a investigação e sanção de graves
violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana e
carecem de efeitos jurídicos, razão pela qual não podem continuar representando
um obstáculo para a investigação dos fatos do caso, nem para a identificação e
a punição dos responsáveis.”
Quando
o MPF denunciou o comandante Ustra, em 2012, ressaltou-se este parecer da CIDH.
O que parecia oferecer uma vantagem para a família das vítimas, para a Justiça
Federal não seria a rejeição desta denúncia que estaria desrespeitando a Corte.
Entre as razões do juiz, descritas no recurso do Ministério, “não se vislumbra
qualquer intenção do Estado brasileiro na punição dos crimes cometidos no
período de exceção”. Para respaldar esta afirmação, os juízes tornaram a
levantar a primeira barreira da corrida: a Lei de Anistia. E, para distanciar
ainda mais as possibilidades, evocaram que a Comissão Nacional da Verdade não
traz em seu texto nenhum intuito de punir os autores dos delitos, e que a
impunidade vem sendo confirmada pela Presidente da República.
O fato
da Comissão não ter caráter jurisdicional ou persecutório não exclui o papel
constitucional do MPF em “promover, privativamente, a ação penal pública, na
forma de lei”. A Procuradoria da República em São Paulo alegou, no recurso do
caso de Ustra e Gravina, que, de fato, não se trata de uma hipótese de uma vítima
em cativeiro, com sua liberdade de ir e vir tolhida, mas isso não significa
que a conduta praticada não seja considerada como sequestro. Para tentar abrir
os olhos da Justiça, a promotoria comparou o caso com outra situação
semelhante:
“Se assim não fosse, a subtração de
crianças, ainda bebês, para viverem como filhos e filhas, adotivos(as) ou não,
com outras famílias, jamais seria considerada como sequestro. Com efeito, no
caso do sequestro de bebês, não há nenhuma vítima em cativeiro e com sua liberdade
de ir e vir tolhida. Mas é irrefutável que tal fato criminoso precisa encontrar
uma resposta no ordenamento jurídico penal.”
Pode-se
perceber que há um ciclo de argumentos que retornam sempre ao ponto inicial: a
barreira da anistia. Mas as decisões, que beiram uma suposta lógica prática,
afastam-se da técnica jurisdicional. O ativista e presidente do Movimento de
Justiça e Direitos Humanos (MJDH-RS), Jair Krischke, não acredita que a Lei
precise de revisão. “Quero apenas que se aplique tal qual está escrita”. Ele
aponta para o segundo parágrafo da norma:
“§ 2° -
Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de
crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.”
Krischke tem
esperança de que a Justiça considere que os crimes cometidos pelos agentes do
Estado são delitos comuns. O professor de Direito Penal Roque Reckziegel
lembra que o crime de tortura, por exemplo, até 1997 não estava previsto no
Código Penal. “A tortura só existia como qualificadora do crime de homicídio e
agravante de crimes genéricos. Assim como o terrorismo, em que até hoje não há
uma definição específica”, explica. O único crime regulamentado que se
assemelha a tortura neste período é o de abuso de autoridade, implantado em
1965. No entanto, novamente há o bloqueio da prescrição. Isso não aconteceria
se a Justiça encarasse a tortura segundo as Convenções Internacionais. “A
tortura é um crime
de lesa-humanidade, logo não prescreve”, defende o professor de Direito
Internacional Roberto Selayaram.
A
natureza do tema e a existência de duas normas, uma interna e outra externa,
gera a chamada “insegurança jurídica”, que, segundo os dois advogados, tende a
ser bastante comum no Direito. Apesar das inúmeras negativas da Justiça
Federal, não foi o que ocorreu em agosto de 2012. A juíza Nair Pimenta de
Castro, da 2° Vara Federal em Marabá, no Pará, aceitou os requisitos para transformar
dois militares nos primeiros réus por crimes na ditadura na Justiça brasileira.
O Coronel da Reserva do Exército Sebastião Curió Rodrigues de Moura e o major
da reserva Lício Augusto Maciel são acusados pelo sequestro qualificado de
militantes capturados durante a repressão à “Guerrilha do Araguaia”, na década
de 1970, e até hoje desaparecidos. Enfim, a corrida por justiça parece estar
mais próxima de chegar aos tribunais.
*Ensaio produzido para o livro "Comissão da Verdade: um movimento para calar o silêncio". Produzido por alunos da disciplina de Projeto Experimental em Jornal (2012/2), sob a orientação dos professores Fábio Canatta e Vitor Necchi, da Famecos (PUC-RS).