Tradicional
confeitaria no centro de Capão da Canoa encerrou suas atividades na última
quinta-feira (23)
Lorenço Oliveira
Na prateleira dos cigarros, não há mais maços. No balcão envidraçado
da caixa registradora, poucas caixinhas de chicletes e doces repousam. Nos
refrigeradores resta uma dúzia de bebidas. Pelas duas portas do estabelecimento,
localizado na esquina das avenidas Paraguassú e Poti, entram e saem pessoas carregando
sacolas de pães, como de praxe. Poucas sabem que será a última vez que sairão
dali com cacetinhos frescos, bolos de cenoura, roscas de polvilho, tortas,
frios fatiados e outros produtos. Despedem-se sem saber. Imaginam que no dia
seguinte terão o mesmo pão francês para o café da manhã. A tarde ensolarada de
23 de outubro de 2014 passa como se fosse uma quinta-feira qualquer. Mas não é.
Logo mais, às 20h15, as portas serão fechadas para não abrirem mais. A mais
antiga e tradicional padaria do centro de Capão da Canoa, a São João, se
despede dos caponenses, depois de 59 anos de atividade.
A decisão de encerrar os trabalhos não é nova. Há seis anos,
quando faleceu João Alves Diniz, o baiano, que fundou a padaria em 1955, os
filhos cogitaram a ideia de fechar o local. No entanto, continuaram. Depois, há
dois anos, quando um dos irmãos, Sérgio, também faleceu, pensou-se novamente em
terminar os serviços. “Neste ano veio uma boa proposta para vender o prédio e
acabamos aceitando, em acordo conjunto entre todos”, explica uma das proprietárias
Maria Elisa Diniz, conhecida por todos como Mariza da São João.
A construção do prédio data por volta do final dos anos 1960,
quando Capão da Canoa ainda fazia parte de Osório. O edifício de três andares, onde
vive parte da família Diniz, foi vendido para uma construtora local do
município. O ponto de esquina será alugado até a entrega do imóvel em junho de
2015. Outros dois estabelecimentos do prédio, um açougue na avenida Poti e um
chaveiro na avenida Paraguassú devem permanecer abertos até o ano que vêm. Para
o dono do açougue, Vilmar Manuel Marques, de 57 anos, o fechamento da São João
afetará o seu negócio que tem mais de 30 anos. “Vou esperar para ver como será
o movimento, porque o meu cliente é o mesmo da padaria”, comenta receoso o
açogueiro. Já o chaveiro, há dez anos no ponto, ainda não tem o futuro
endereço.
“Cansaço”, definiu Mariza, de 63 anos, os quais 50 dedicou
ao trabalho na confeitaria. Ela é a segunda mais velha dos seis filhos de João.
“Eu tinha nove anos e o Sergio, meu irmão abaixo de mim, tinha sete, quando
vendíamos na rua os sonhos [de doce de leite] que meu pai fazia no antigo Hotel
Rio-grandense”, relata a confeiteira. Com a morte da mãe, Elvira, em 1964, aos
48 anos, devido complicações no coração, Mariza acabou assumindo a criação dos
irmãos muito cedo, com apenas 12 anos de idade. “Não tenho hobby. Tudo que eu
fiz na vida foi voltado para a padaria”, conta Mariza, que não se casou e nem
teve filhos.
Uma pequena casa de alvenaria na avenida Poti, quase esquina
com avenida Paraguassú, foi o primeiro endereço da São João. “Gêneros
alimentícios em geral”, anunciava a pintura na parede. “Nessa época, o baiano (João Alves Diniz) usava
forno de barro para assar os pães”, recorda Elisabete Diniz, de 60 anos, sendo
37 deles vividos dentro padaria. “Bete”, como é conhecida, é viúva de Sérgio e
permaneceu trabalhando com a família depois da morte do marido. “Quando eu
cheguei para trabalhar aqui, se vendia de tudo dentro da padaria, como um
mini-mercado”, relata.
Em 1960, a casa foi estendida até a esquina da avenida
Paraguassú.
Nessa época, baiano começou a produzir sorvetes artesanais que eram um sucesso
na praia. “O sorvete de abacate era o melhor da praça”, lembra o padeiro mais
antigo da São João, Ildo Luis Nunes, no ofício desde 1973.
Entre os herdeiros de baiano, no total oito filhos, seis do
primeiro casamento e dois do segundo, todos passaram pela padaria, ajudando de
alguma forma. Dos quatro filhos de Bete, apenas Marilia, de 26 anos, seguiu a
tradição e ficou até o fechamento. “Eu cresci brincando e ajudando minha mãe e
meus tios aqui dentro da padaria”, explica a neta de baiano. Marilia conta que
pela idade da padaria, muitos clientes cresceram frequentando o local e hoje
trazem filhos para visitar a padaria. “Não adianta. A gente tenta esconder um
pouco a emoção, mas acaba se apegando ao lugar e aos clientes”.
Nenhum aviso nas portas do estabelecimento informou que a
confeitaria seria fechada. Há cerca de um mês, o boato começou a correr de
boca-a-boca. Aberta de segunda a segunda, inclusive em feriados, os clientes
mais fiéis e amigos da família já tinham conhecimento do fato. Mas a maioria
foi pega de surpresa quando Marilia, que estava sentada no caixa, dava a
notícia ao devolver o troco: “Então, hoje é o último dia”, anuncia a jovem.
“Sério? Mas onde eu vou comprar meu pão agora?”, indaga o aposentado de 80
anos. “É uma pena! O atendimento era muito bom”, comenta o senhor, que há 12
anos é cliente da padaria. Outro cidadão, menos elegante, para em frente ao
caixa: “Me vê um Marlboro azul!”, “Não temos mais cigarro”, responde Marilia.
“Ah! Não tem? Vão quebrando devagarinho então”, brinca o homem, que sai porta
fora. Marilia ri. Até porque, não há mais nada a dizer.
Embora o fechamento tenha desagradado muitos clientes,
Mariza é enfática: “Chega uma hora que é preciso parar e descansar”. E, de
fato, não há outra motivação. Durante toda a tarde do último dia de
funcionamento, o movimento das vendas foi igual a qualquer dia de inverno.
“Três fornadas pela manhã, mais cinco à tarde”, explica Mariza. Ao todo, são
mais de três mil cacetinhos assados todos os dias no forno à lenha
“Ultra-vulcão”. No verão, a produção triplica, pois a fila do pão chega a sair
para a rua e se estende pela calçada.
Para Mariza, o sucesso da São João se dá pela tradição do
produto. O pão francês, carro-chefe da padaria, é assado da mesma forma há
anos. “Nunca vendemos pão congelado. É mais simples de fazer, mas não é a mesma
coisa”, argumenta a confeiteira. E os clientes concordam. Daqui pra frente, o
pão não será mais o mesmo.
*Matéria publicada originalmente na página 4 da edição de 30 de outubro de 2014 do jornal Momento (Osório-RS).