quarta-feira, 8 de agosto de 2012

A ilha de um homem só

Benjamin Trevisan vive há 30 anos isolado em uma porção de terra na Lagoa dos Quadros e até hoje esta história não foi bem contada

Texto e fotos | Lorenço Oliveira

Para John Donne, escritor inglês do século 16, “nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme”. Para os moradores de Prainha, distrito de Maquiné banhado pela Lagoa dos Quadros, Benjamin Trevisan é uma pessoa comum. Longe de ser um ermitão ou um Robson Crusoé moderno, ele plantou, criou animais, instalou luz elétrica e construiu uma casa, onde vive sossegado com seus 80 anos. Para alguns, ele é apenas um posseiro teimoso.

INTERESSES: Os sete hectares quase viraram uma área de nudismo nos anos 1980.
Para chegar à ilha do Pontal, Trevisan tinha que atravessar o chamado Boqueirão, uma distância de cerca de 200 metros da beira. Antigamente, em época de estiagem, a lagoa baixava e emergia uma passagem entre a ilha e o pontal. Por causa desta metamorfose sazonal, os povos da região a chamavam de ilha Mística. Com a navegação fluvial, o estreito virou canal e a ilha se “desgrudou” do Pontal definitivamente. No entanto, por motivos desconhecidos, o dono da ponta começou a impedir a passagem de Trevisan à lagoa. Foi então que um vizinho resolveu ajuda-lo.

“O meu pai deixava-o passar de carro, aqui por cima do nosso terreno, para chegar até a água”, recorda-se Eva Mittmann, apontando para um gramado trilhado ao lado de sua casa. Eva nasceu em 24 de outubro de 1953, mas, por descuido da família, foi registrada como nascida em 3 de novembro. Sua irmã Angelina, 11 anos mais nova, apesar de ser filha de pescador, nunca aprendeu a nadar. “Fui só uma vez lá na ilha porque tenho medo de barco”, envergonha-se.

As duas irmãs nasceram e moram até hoje à beira da lagoa. Relatam que Benjamin era um estranho na região quando veio morar na ilha, mas nunca causou problemas a elas. “É uma pessoa de pouca conversa, que de vez em quando pedia algum favor para nós”, remonta Eva. “Hoje, ele está doente e, às vezes, meu filho busca alguns remédios para o caseiro dele vir pegar.”

Claudio Ferreira, que mora há oito meses com Trevisan, busca os mantimentos como água e comida em Maquiné. Uma vez por mês, ele o leva para cortar o cabelo e receber a aposentadoria. Quem paga o salário de Claudio e os medicamentos é a ex-esposa de Trevisan, que não o visita muito, mas que conversa pelo menos uma vez por mês com Eva por telefone. A mulher, que mora no município de Rainha do Mar, teve uma filha com ele, que também o vê pouco. A ex-esposa não quis conceder entrevista, por acreditar que a reportagem pudesse interferir no processo judicial pela posse da ilha.



Os primeiros moradores

Assim como Trevisan chegou a formar uma família, a ilha do Pontal também “teve” uma. O mais antigo morador do local que se teve notícia foi Otacílio Justino da Rosa. Por mais de 40 anos, o pescador viveu e criou sete filhos na lagoa. A terceira filha dele, Edite Rosalina Eloy, é a única que voltou a morar nas redondezas de Prainha.

“Não havia luz elétrica, as casas eram de pau a pique e dormíamos em camas de tarimba, um tipo de estrado feito de pau e costurado com palha de milho”, explica Edite entrelaçando os dedos das mãos. “E os travesseiros eram de macela.” Plantavam diversos alimentos, entre eles melancia, melão, moranga, batata e aipim. Os homens da família pescavam traíra, bagre, viola, roncador e outros peixes. Tudo que produziam não era apenas para o sustento, mas principalmente para vender em Capão da Canoa.

Apesar do isolamento que a ilha aparenta, os sete filhos de Otacílio frequentavam a escola e se relacionavam normalmente com a vizinhança. Aos 12 anos, Edite se mudou da terra natal para o Passo do Feijó, em Alvorada, onde morou com a irmã até completar os estudos. Virou empregada doméstica na Capital e se casou com um torneiro mecânico da antiga empresa Royal. Há dez anos, quando se aposentaram, vieram para a região.

“Otacílio vendeu para um sujeito de Esteio, dono de um moinho de trigo, que pagou 10 mil réis pela ilha”, esbraveja o marido dentro de casa. O gigante Bira surge na porta com olhos apertados e barba branca de papai Noel. Ubirajara Fragoso se recorda que o sogro pagava um tipo de imposto à prefeitura de Osório pela posse do terreno. Além do mais, Otacílio já não tinha os filhos por perto e estava começando a adoecer. Com 7 mil réis comprou alguns hectares ali por perto e o restante usou para construir uma nova moradia.


Os Nunes

“Meu avô dizia que esta ponta pertencia aos Nunes, nossos antepassados”, esclarece o funcionário público e morador de Prainha Paulo Rech da Silveira. A história da família Nunes com o Pontal remonta ao início do século 19.  Em 15 de fevereiro de 1819, por meio de uma Carta de Título de Terras, o Governador e capitão general da capitania de São Pedro, Don José Castel-Branco, concedeu a Pedro de Borba uma ilha com “cinquenta braças de frente e cem de fundos” na borda da Lagoa dos Quadros, denominada Casa de Telha. Pedro teve uma filha chamada Florisbela Maria da Rosa, que se casou com José Nunes da Silveira; avós de Fermiano Nunes da Silveira, avô de Paulo.

“Trevisan apareceu na casa de meu avô pedindo para habitar a ilha em 1980, quando eu tinha uns 15 anos”, recorda-se Paulo. Fermiano permitiu, mas com a condição de que seu filho Manoel, pai de Paulo, fosse junto com ele. Manuel, ou Memelo, como era conhecido, passou a viver em tempo integral na ilha e visitava a família apenas duas vezes por semana. Ajudou Trevisan a construir e criar animais durante 14 anos. “Quando ele saiu de lá, passaram-se uns dois meses e teve um infarto, aos 68 anos”, lamenta Paulo. Trevisan restou.


O nudismo

Egon Birlem era o típico prefeito polêmico. Havia recém entrado na prefeitura e fazia uma campanha exaustiva de promoção do novo município: Capão da Canoa. Foi quando, nos idos de 1984, um vereador do município comentou com ele que um veranista de Xangri-Lá, praia vizinha, havia comprado uma ilha na lagoa. Birlem se perguntou: “Uma ilha nos Quadros?”

O comprador era o mesmo produtor de trigo de Esteio relatado por Ubirajara. “Mas nunca chegou a visitá-la direito, parece que uma cobra quase o atacou uma vez e, então, não quis mais saber”, lembra o ex-prefeito. O esteense fez um acordo com a Câmara de Vereadores de Capão, por meio de documento que cedia a ilha para o município. Para um sujeito ambicioso como Birlem, descobrir um terreno lacustre de sete hectares era um achado; porém, mal sabia que a ilha tinha dono.

Nessa época, Capão estava sob os holofotes da imprensa gaúcha, e nem sempre por fatos positivos. Era a primeira temporada em que um surfista morria afogado em uma rede de pesca no mar. A prefeitura teve de baixar um decreto às pressas para dividir a praia em áreas separadas para pesca, banho e surfe.

Um dia, o colunista social de um jornal diário fez uma visita ao gabinete do prefeito, com duas veranistas que queriam “trocar uma ideia” com ele. “Prefeito, já que agora você está demarcando áreas para atividades específicas na praia, nos gostaríamos de saber se não teria como fazer uma área para a prática de topless?”, questionaram as duas garotas.  Birlem chegou a pensar, mas respondeu na hora que “a sociedade ainda não estava pronta para isso”. Porém, deixou escapar: “Existe uma ilha que estamos estudando, que talvez um dia possa ser uma área para isso aí... Como é mesmo, naturismo, nudismo?”.

Daquele encontro, surgiram os boatos e as manchetes: “Prefeito de Capão quer fazer ilha de nudismo na lagoa dos Quadros”. Egon não se arrepende do que fez. O projeto nunca existiu, mas a boataria foi nacional. Naturistas de todo o Brasil queriam saber que ilha era aquela que um político gaúcho queria promover.

Os moradores da Prainha acreditam que essa polêmica tenha tirado o sossego de Trevisan. Uma vez que o prefeito tentou levar a imprensa diversas vezes à ilha, Trevisan tinha motivos para temer ser expulso de lá, então, decidiu entrar com processo de usucapião do terreno. O procurador geral do município da época, Humberto Lauro Ramos, é convicto de que a ilha não pode pertencer a Benjamin. A partir da Constituição de 1967, as ilhas não pertencentes à União passaram a integrar o patrimônio dos Estados-membros, fato que inviabiliza a aquisição da propriedade por usucapião. Após 12 anos de trâmites, sai um veredito. Em 8 de agosto de 1996,  o jornal Zero Hora publicava: “Ilha do Pontal pertence ao Estado”.

No entanto, no relatório de apelação a reexame do caso, em 2005, fica claro no voto do relator e Desembargador Guinther Spode que a ilha do Pontal não sofre os efeitos da carta de 67, por ser propriedade privada desde os idos de 1819, e não passou a pertencer ao Estado. O processo está arquivado e aguarda novo reexame. Os mandados de reintegração de posse chegaram a ser retirados, e Benjamin Trevisan segue vivendo até hoje na ilha. Tende a sair cada vez menos por seu estado de saúde. Trevisan só quer descansar em paz os dias que lhe restam. Nenhum homem é uma ilha, mas talvez Trevisan seja.

*Reportagem publica na Revista Experiência Famecos-PUCRS (Julho 2012), produzido na disciplina de Produção e Redação em Revista, ministrada pelos professores Vitor Necchi, Luiz Adolfo Lino de Souza e Flavia de Quadros.

Confira abaixo a versão imprensa da reportagem: